quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Resenha: FARFALHANDO A CARTOGRAFIA DA COR NEGREIRA.

FARFALHANDO A CARTOGRAFIA DA COR NEGREIRA
Por Socorro Patelo
Resenha do livro Cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará.
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VALLE, Camila do (Org.) et all. 
Ed: Rio de Janeiro, Belém: Casa 8, IPHAN, 2012. 190p .



        De início pensei em encontrar mapas, pensando em cartografia como arte de compor mapas, no caso mapeamento social dos afrorreligiosos de Belém. Mas me deparei com um quadro social descritivo das diversas comunidades religiosas de origem africana, que, de uma forma anti literária, traduzem suas experiências místicas e o conflito entre o mundo de seus deuses e o mundo político dos brasileiros, onde estão inseridos.
Reunidos em terreiros – palavra portuguesa para área de terra – que em yoruba é egbe; ou casa (ilé, ou ilé axé, casa de axé), ou como dizem os pertencentes à nação Angola (manso, Abassá, inso ou cazuá Ngunzo-Ngunzo); ou o chamado barracão, onde eles colocam em xeque os discursos historicamente estabelecidos como lógicos, que se pretende fixar e explicar objetivamente.
Quando os povos africanos vieram para o Brasil, a intenção é que perdessem tudo: liberdade, família, língua, nação, tribo a que pertenciam e tudo o mais que poderia identifica-los como pessoas. A tragédia social que viveram teve a fé em suas divindades, como único sustentáculo e força de preservação de humanidade e valores civilizatórios. Foi a fé que manteve (e mantém) suas identidades, ainda que, com o decorrer do tempo tenha havido sincretismo, mudanças em suas práticas, através da mútua influência das várias nações, dos vários dialetos que falavam, assim como de outros povos oprimidos, como os povos indígenas.
A desconstrução de suas identidades levou-os à construção de uma identidade religiosa e cultural (africana) formada das diversas nações (Umbanda, Mina Jeje Nagô, Angola, Keto Jeje Savatu e a Pajelança). Eles se reconstroem nos terreiros, dando significados às suas próprias vidas, na cena de seus signos sagrados, sua música e sua dança (uma espécie de dança de roda de Angola, que em banto era semba, ou samba, na língua quicongo e na língua umbundu, significava "agitado"),assim como em seus adereços (colares, pulseiras, tiaras etc.).
Em cada detalhe, esses povos também se reconstroem em uma África brasileira e amazônida. A terra de origem tem o caráter mágico no papel de um elemento crítico e valorativo. O mágico é a dimensão da origem. Eles são africanos, ainda que tanto tempo tenha se passado. Sua origem não foi perdida com a tentativa de desconstrução social. No interior dos terreiros, eles detêm um conhecimento que não lhes pertencem e que é passado às gerações posteriores através da oralidade e da memória. É Ifá (o oráculo) quem profetiza e dá as orientações e desejos dos orixás (entre os Yorubas) ou Jinkisis (entre os de Angola), pois tudo tem um segredo divino. “Tudo tem fundamento e tudo tem um tempo.” Nada há de natural na natureza. Ela é ao mesmo tempo cultural, natural e divina.
Mas para a socierdade brasileira o caráter de suas comunidades foi lapidado nos preconceitos, na intolerância social, na repressão, na incompreensão e nas violências que sofreram e que ainda hoje sofrem como demonstram seus depoimentos. Ainda assim, preservam suas tradições. Mesmo que a complexidade de suas relações e diferenças ritualísticas manifestados nas várias nações e segmentos, eles se adequam às circunstâncias políticosociais, buscando cidadania, liberdade de expressão, liberdade religiosa, o direito de oferecer suas oferendas aos seus orixás, de confortar doentes em hospitais, de cultuar os ancestrais nos cemitérios.
O mapeamento tem por base a visualização dessas diversas nações e seu fortalecimento como religião, buscando minimizar os distanciamentos que impedem a aceitação de culturas diferentes, combatendo a discriminação religiosa, melhorando a relação entre suas próprias comunidades e ainda, buscando interação com população. Na visibilidade social e política, eles tem procurado sair do anonimato a que foram relegados para mostrar que, como toda religião verdadeira, também buscam a paz, a harmonia social, promovem trabalhos sociais, inclusive filantrópicos e merecem o respeito dos demais.
Os depoimentos contidos no livro são importantes como objeto de estudos, seja na área de direitos humanos, posto que seus personagens clamem serem justiçados e verdadeiramente legalizados; seja na área da política democrática, sinônimo de igualdade; seja nas dimensões culturais da antropologia, pesquisando-se a relação identidade e alteridade; seja porque contém rico material para o campo de pesquisa da psicologia social e os fenômenos de grupos – algozes e/ou vítimas – de racismo, fanatismo, linchamentos, perseguições, etc., podendo abranger estudos da sociologia, da ciência política, da pedagogia (vide Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido) e da filosofia, que reflete sobre toda atividade humana, na busca de seu significado.
O grupo de afrorreligiosos é como “Macunaíma” de Mário de Andrade, que nasceu “preto retinto e filho do medo e da noite”. Na atualidade, o medo que os acuava está se expondo à sociedade, para que esta possa conhecer a riqueza desse grupo que manifesta sua visibilidade. Para compreendê-los é preciso imergir em sua cultura, desfazendo o ofuscamento social secular.
Com essa cartografia, eles esperam que Marx tenha razão, e que “tudo que é sólido se desmanche no ar”, fazendo ruir o sólido império do preconceito e da discriminação que os situa na exclusão social prejudicial aos seus direitos humanos mais fundamentais de igualdade e de liberdade.

São Paulo/SP, fevereiro de 2013.

Socorro Patello
Profa. de Filosofia aposentada/ UFPA

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